Quando o romantismo se torna antiquado

Desonra - J.M Coetzee

Desonra – J.M Coetzee

Desonra é um livro publicado em 1999 pelo autor sul africano J.M Coetzee.

O livro narra a história de David Lurie, homem de 50 anos e culto professor de literatura em uma universidade da Cidade do Cabo que se envolve romanticamente com Melanie Isaacs, uma de suas alunas de 20 anos.

Desonra se passa em uma África do Sul pós-apartheid, período de 1948 a 1994 marcado pela institucionalização da segregação racial, instaurado pela união de colonos ingleses e uma etnia chamada Afrikan, ou bôeres, com origem nos Países Baixos, Dinamarca e Alemanha. Algumas características desse regime era a proibição do casamento entre raças e a proibição de negros ocuparem o mesmo território que brancos. Isso tudo em uma África do Sul onde a maioria da população era negra.

Em certo momento, David Lurie, ao se relacionar com sua aluna, comete um estupro. Contudo, não é um estupro violento, dando a entender que foi, até certo ponto, consensual.

“Estupro não, não exatamente, mas indesejado mesmo assim, profundamente indesejado. Como se ela tivesse resolvido ficar mole, morrer por dentro enquanto aquilo durava, como um coelho quando a boca da raposa se fecha em seu pescoço. De forma que tudo o que lhe fosse feito, fosse feito, por assim dizer, de longe.”

Quando esse evento ocorre, a estudante Melanie para de frequentar as aulas, e isso desperta nele preocupação. O que ele temia acontece, e Melanie leva a público o que houve entre ela e seu professor. Contudo, o estupro em sí não é um problema, somente o fato de um professor ter se relacionado sexualmente com uma aluna.

Lurie então passa por um julgamento realizado por seus pares na faculdade que leciona. Embora seus colegas de profissão tentem ajudá-lo a contornar essa situação apenas sugerindo que ele peça desculpas pelo ocorrido, David se recusa categoricamente a pedir desculpas. Sendo assim, ele é afastado do seu cargo de professor.

“Faz-me lembrar, muito, a China de Mao. Retratação, autocrítica, desculpas públicas. Sou antiquado, prefiro simplesmente ser posto contra a parede e fuzilado. Acabar de uma vez.”

Agora o ex-professor se vê desempregado e sem rumo, então decide passar um tempo na casa da filha Lucy, uma jovem adulta lésbica que vive em uma pequena fazenda de cinco hectares de terra em uma cidade chamada Salem, no Cabo Leste. Lá, ele tem planos de ficar um tempo para se reaproximar da única figura feminina que ele demonstra algum afeto genuíno.

Já na casa de Lucy, David Lurie começa a conhecer um pouco da rotina da filha. Ele conhece alguns amigos dela, Bev e Bill Shaw, que fazem eutanásia em animais abandonados em uma antiga clínica veterinária que fechou as portas, e Petrus, um homem negro que ajuda Lucy nas tarefas da fazenda e vive em uma casa ao lado da propriedade de Lucy. Imediatamente David detesta todos eles, pois de acordo com ele, eles são pessoas incultas, pequenas, que não tem nada a agregar a sua filha, tampouco a ele.

Nesse cenário, David então é obrigado, a muito contragosto, a se adaptar a uma rotina e a pessoas que ele jamais sonharia em fazer parte. Ele começa a fazer trabalhos manuais na fazenda e ir até a feira vender legumes, por exemplo.

Um dia, três homens negros invadem a propriedade de Lucy e cometem um ato terrível contra eles: David é preso em um banheiro e ateado fogo, enquanto Lucy é violentada pelos três homens ao mesmo tempo.

Nesse ato terrível, David não sofre grandes danos físicos, porém Lucy entra em um espiral de autodestruição pois ela caiu em desonra. David então começa a insistir que Lucy preste queixa na polícia sobre a violência que ela sofreu, mas ela se recusa. E ele simplesmente não consegue entender o porquê. Agora ele entra numa jornada de autoavaliação e autocrítica que o leva até um estado de redenção.

Desonra do autor J.M Coetzee é um livro extremamente desconfortável, contudo escrito de uma forma incrivelmente linda. É a “sutil maldade” disfarçada em uma escrita impecável. O domínio que o autor tem da escrita é algo invejável. É o tipo de livro que, quando se lê, se inveja a capacidade de coesão que algumas pessoas possuem.

David Lurie é um personagem extremamente interessante. Não que ele seja um personagem do bem, não, ele não é. Ele é cruel, egoísta e preconceituoso. É aquela pessoa, que todo mundo conhece ao menos uma, com um ar de superioridade intragável. Mas acompanhar o início da sua jornada de redenção é uma experiência ímpar. Vemos uma África do Sul colonizada por brancos que impuseram seu idioma nativo, e assolaram a cultura local.

“Cada vez mais ele está convencido de que o inglês não é a língua adequada para a verdade da África do Sul. Em inglês, a história se transformou num código e longos trechos dela engrossaram, perderam sua articulação, sua articulosidade, sua artificiosidade. Como um dinossauro a expirar e a se assentar na lama, a linguagem endureceu.”

Uma África do Sul com cicatrizes do apartheid que não vão sumir tão cedo na história do país, onde os oprimidos agora estão cobrando as maldades que sofreram com juros e correção. Com isso, Lucy, mulher branca vivendo sozinha em uma África negra, não via outra saída a não ser não denunciar seus agressores, como uma forma de imposto para poder seguir sua vida dali. Ela se vê, então, impotente, obrigada a depender da proteção de algum homem, Petrus, mesmo que isso signifique dar sua terra para ele.

Quando o romantismo se torna antiquado

David Lurie, por ser um homem culto e intelectual, usa poesia e literatura para expressar o que sente e justificar suas ações. Ele se vê como um romântico contemporâneo, fortemente influenciado por autores do Romantismo clássico, como William Wordsworth, P.B. Shelley e, sobretudo, Lord Byron.

Byron tem uma versão própria de Don Juan, baseado no Don Juan espanhol de El Burlador de Sevilla, de Tirso de Molina. Porém, o Don Juan de Byron não é aquele homem perspicaz que seduz mulheres, e sim um homem facilmente seduzido por elas. Por isso, ele acaba se envolvendo com várias mulheres diferentes e enfrentando diversos problemas por conta disto.

Em Desonra de J.M Coetzee, as mulheres são retratadas apenas como objetos sexuais que existem para saciar os impulsos sexuais animalescos do professor. Com Lucy, porém, David fica se questionando como seria a vida sexual de sua filha lésbica com sua ex-parceira.

Uma vez que Lurie se entende como o Don Juan de Byron, vítima dos feitiços femininos, não há nada que ele possa fazer para impedir que esse desejo sexual saia da sua cabeça e vire realidade. Sendo assim, ele justifica seu relacionamento com Melanie como algo inevitável.

David se relaciona sexualmente também com Bev Shaw e trata isso como um “downgrade”. Antes ele se relacionava com uma jovem de 20 anos, agora ele está fazendo sexo com uma mulher de 50 anos.

Quando Lurie, cego pego Romantismo inglês, se encontra na realidade de uma África do Sul negra pós-apartheid, ele descobre que o romantismo que ele tanto romantizou, se tornou antiquado na vida real.

Jornada de Redenção

Em meio a todo caos e a preços altíssimos pagos pelas mulheres, David Lurie começa uma jornada de redenção. Ele parece não ter plena consciência disso porque ele é orgulhoso demais e se acha muito velho para mudar, contudo de forma bem sutil, Lurie começa a se entender como algoz, e não somente como um algoz da menina Melanie que foi violentada, mas também como um homem branco indiretamente responsável pela segregação de pessoas num país majoritariamente negro.

De que vale tanta inteligência e cultura quando você não tem a capacidade de entender a vida real ao seu redor e, sobretudo, a sí próprio? Esse é um livro com inúmeras camadas difíceis de digerir, onde muitas perguntas são feitas e sutilmente respondidas com a irônica ignorância de um homem inteligente.

Ao finalmente se desculpar pelos seus erros, David Lurie começa a sentir, pela primeira vez, os privilégios da empatia.

Sobre o autor

John Maxwell Coetzee nasceu em 9 de fevereiro de 1940 na Cidade do Cabo, na África do Sul.

Foi duas vezes vencedor do Booker Prize. Em 1983 por Vida e época de Michael K, e em 1999 por Desonra.

Em 2003 ganhou o Nobel por “sob inúmeras formas, retrata o surpreendente envolvimento do outsider”, segundo a academia sueca.

Um livro que levanta muitas perguntas e as reponde com a irônica ignorância de um homem inteligente.

Livros, arte e filmes.

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