Dizem que o ser humano conhece mais o espaço sideral do que o fundo do mar. Portanto, não me surpreenderia se descobríssemos uma criatura translúcida que emana luz e se alimenta de seres humanos para assumir formas humanoides.
“The Haar”, publicado em 2022 de forma independente pelo autor escocês David Sodengren, é um livro de horror indie com uma improvável protagonista: uma solitária senhora de 84 anos que se recusa a deixar sua casa diante da pressão de um bilionário ganancioso.
Muriel McAuley, vive em Witchaven, uma pequena aldeia de pescadores do século XIX na Escócia, composta por 24 chalés e algumas fazendas. Diariamente, os poucos moradores desfrutam da rara oportunidade de contemplar o nascer do sol no vasto oceano azul.
McAuley vive sozinha, recebendo visitas esporádicas dos vizinhos e sentindo a constante saudade de seu querido Billy, marido que desapareceu no mar há 12 anos durante uma pescaria. Seu corpo nunca foi encontrado.
Um dia, a pacata vila atrai o interesse de um bilionário que deseja destruir o local para construir um campo de golfe. Evidentemente, os moradores detestam a ideia, mas gradualmente aceitam as ofertas do bilionário por suas propriedades. Muriel e Arthur, seu vizinho e melhor amigo, recusam-se veementemente a abandonar seus lares, onde nasceram, cresceram e foram felizes. Assim, permanecem sozinhos na vila, prestes a se tornar um palco de horrores.
Certo dia, McAuley caminha pela praia e encontra uma criatura marinha desconhecida encostada em uma pedra: era uma criatura escamosa, meio anfíbia, de pele translúcida que alternava entre azul e verde, pulsando como um coração. Muriel fica petrificada, mas sua curiosidade a faz se ajoelhar até ouvir a criatura, com uma voz sussurrante e fraca, pedir socorro.
Apesar do medo e da incerteza, McAuley decide ajudar a criatura. Ela a pega e a leva para sua casa, onde a criatura encontra seu novo lar: a banheira da casa de Muriel McAuley. Aos poucos, Muriel e a criatura, nomeada por ela de Avalon, vão se familiarizando, até que Avalon manifesta a necessidade de se alimentar. Seu prato favorito, no entanto, são seres humanos.
Eventualmente, Avalon se alimenta de sua primeira vítima e, ao terminar, transforma-se em Billy, o marido desaparecido de Muriel McAuley.
A partir disso, a pacata Witchaven se torna um verdadeiro banho de sangue.
O poder da memória
Quando morremos, nos tornamos memórias para aqueles que ficam. Quando essas pessoas também se vão, caímos definitivamente no esquecimento. Contudo, ser lembrado por quem amamos já é o suficiente.
O presente nada mais é do que uma série de acontecimentos passados que nosso cérebro decifra através das memórias. Nossa visão e compreensão do mundo são uma série de memórias concatenadas. Portanto, tudo o que somos é composto por memória.
Gosto de marcar e sublinhar livros para relembrar algo que me marcou. Este blog também funciona como um mural de memórias, onde posso revisitar momentos importantes que me moldaram e contribuíram para quem sou. É como olhar uma foto de uma viagem: relembrar aquele momento é reviver.
A protagonista de “The Haar”, Muriel McAuley, é uma senhora de 84 anos que poderia esquecer tudo, menos como seu marido Billy a fazia feliz. Essa memória se torna real novamente quando Avalon assume a forma de Billy. Quando a criatura a tocava, ela se sentia bem, sem dores, como se nada pudesse machucá-la. A vida voltava a ser serena com Avalon, pois ela via e sentia na criatura a memória do seu amado marido.
“Muriel maravilhava-se com a estranha beleza da criatura e a extraordinária sensação que ela proporcionava. A dor desaparecia.”
Esquecer é normal: como um HD de computador, nosso cérebro precisa liberar espaço para novas informações. Contudo, quando esquecemos coisas importantes, é como se perdêssemos parte de quem somos. Então, se for para nunca esquecer algo, que sejam os amores e a memória de como fomos felizes.
David Sodengren nos mostra, em uma dicotomia entre delicadeza e ultraviolência, a verdadeira face do amor. Representado por uma criatura grotesca, Muriel é capaz de amá-la porque ela personifica o que ela lembra ser amor. Para Muriel McAuley, não existe forma para o amor. O amor simplesmente é.
Em pouco mais de 200 páginas, o autor explora como a memória pode resgatar sentimentos, e como o amor é algo sem rótulos. Somos aquilo que lembramos.
O livro foi escrito como uma homenagem à falecida avó de Sodengren, que foi a grande responsável por despertar nele a paixão por filmes e livros de horror. Segundo o autor, sua avó odiaria o livro, mas essa foi sua maneira de homenageá-la e garantir que ela nunca fosse esquecida.
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